Ronaldo Magalhães
Mestre em Arte Cênicas -UFBA
“Enxergar além do que os olhos podem ver não é um dom, mas é ter a percepção de querer ir mais além e ultrapassar os limites de sua própria natureza, isso é sabedoria”.
Jorge Gamboa.
Vivemos em um tempo em que há uma produção excessiva de informações e a superabundância de imagens. Na era da digitalização torna-se, inclusive, uma tarefa difícil selecionar aquilo que queremos ver. Nossa cultura visual é imensa e podemos dizer que, diante de tal imensidão vemos e não vemos, olhamos e não olhamos. E assim “passamos” muitas vezes pelas inúmeras imagens sem percebermos ao certo do que se trata. O que estamos vendo? Ocorre uma espécie de embotamento perceptivo e geralmente só conseguimos olhar para a superficialidade das coisas, ou seja, nosso olhar é o tempo todo estimulado, mas há a preponderância de um condicionamento que delimita, restringe e seleciona nossa maneira de enxergar o mundo. Como assevera Didi-Huberman (Dinâmicas Sul-Sur, 2017), “vivemos numa civilização dos clichês. E nosso trabalho é olhar imagens ou criar imagens que desconstruam os clichês. [...] Precisamos tomar o tempo para ver um pouquinho melhor.”
O que a gente realmente vê? Há uma diferença entre olhar, ver e enxergar. Eu olho quando dirijo mecanicamente o meu olho de um lado a outro. Ver já exige a utilização da percepção, do sentido de visão. Enxergar é ver com profundidade; é perceber num estado de alerta, de presença; é abrir-se à contemplação, ir além do físico, dando vazão ao que está oculto, ao que é invisível por meio da intuição.
Você olha para o mundo, o vê e o percebe a partir de um conjunto de vivências e experiências. Segundo Jorge Larrosa Bondía, “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (BONDÍA, 2002, p. 20). E ao nos atravessar, nos forma e nos transforma e isso ocorre a partir do modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. O que suas retinas captam são estímulos que chegam de fora, os estímulos externos, que só se fazem perceptíveis por causa da incidência da luz e dos estímulos internos produzidos por meio da apreensão simbólica das coisas, através de sua experiência cultural, emocional e psíquica. Os estímulos se ajustam para traduzir de modo objetivo e prático, com o auxílio das sinapses nervosas, o registro da imagem captada.
O instante surge diante dos olhos sem a mínima preocupação com leis e tratados. O instante explode em forma de acontecimento e se fragmenta no caleidoscópio repleto de possibilidades. No vão daquilo que ainda não é, ele nasce e brota tão rapidamente e se processa através de um movimento vital presente em todo o universo e, por meio da ação, constrói-se de instante a instante, a forma, a concretude.
Há um ritual que precisamos reaver ou se quisermos, resgatar: o estado de contemplação que requer um pouco de atenção e concentração. O mergulho meditativo em si mesmo. O encontro com o vazio para seguir em direção ao jogo intencional da fruição da imagem, ter a paciência para deixar maturar suas características, observar quais impressões ela provoca em você, concatenar ideias, conceitos com emoções e valorações advindas de sua própria experiência.
Esse ritual se aproxima muito da prática Zen Budista em que a busca da experiência chamada “satori”, a abertura do terceiro olho, é a base para o encontro da espiritualidade. É preciso ter consciência do estar aqui e agora em presença absoluta para aproveitar os benefícios da fruição, para se ter uma experiência significativa quando estivermos interagindo com alguma imagem, principalmente se houver a preponderância de abstração em sua forma e conteúdo. É preciso ver com os olhos da mente em busca, inclusive, de enxergar o que não pode ser visto a olho nu, pois o essencial é invisível aos olhos, como afirmou Antoine de Saint-Exupéry.
Ainda falando dessa experiência transcendente do olhar, Joseph Campbel, em seu livro O voo do pássaro selvagem faz uma descrição muito interessante sobre a experiência realizada pelos iogues no intuito de superar esse “olhar óbvio” – e que Merleau-Ponty vai chamar de olhar de sobrevoo – para atingir um estado de não-mente, que facilita a obtenção de um olhar mais altaneiro, uma visão panorâmica da realidade, que consegue captar além dos significados e sinais impostos pelo olhar padronizado. Segundo Maia (2005), a primeira forma de desalienação é o conhecimento que cria as condições de saber ver e não simplesmente olhar. Ver tem como premissa a posição crítica do observador. É o que o capacita a ler o que é essencial e o que é aparência no objeto observado (MAIA, 2005, pp. 96-97).
É preciso exercitar o imaginário e a imaginação quando se quer enxergar com sensibilidade e inteireza. É preciso aceitar-se como parte do todo. É preciso abrir-se para o novo e o desconhecido. Enxergar além é dar-se a perceber o universo como uma rede entrelaçada, é olhar para o mundo com os olhos da alma, pois o ato de ver é uma experiência complexa, sensório-motora e o ato de enxergar é uma experiência psíquica e espiritual.
Isso nos leva a afirmar que o ato de ver pode ser aprendido. Há que se educar o olhar para que haja uma resposta mais apurada de leitura das imagens. As coisas são mediadas pela nossa experiência. O que vemos é constantemente modificado quando há a interação entre o conhecimento e a experiência. Nesse sentido é importante frisar que linguagem e imagem estão interconectadas. O verbo é cego, mas é o verbo que torna a imagem visível. Por meio da linguagem criamos as imagens e o mais interessante é buscarmos o equilíbrio em constante fluxo entre ambos.
Como diz Meinig: “Qualquer paisagem é composta não apenas por aquilo que está à frente dos nossos olhos, mas também por aquilo que se esconde em nossas mentes” (MEINIG, 2002, p.35). E o poeta Manoel de Barros endossa que “o olho vê”, mas que “é a imaginação que transvê” (BARROS, 2004, p.74), que transfigura o mundo, que faz outro mundo. “A transfiguração é a coisa mais importante para um artista”. E eu acrescento que não só para o artista, ela é importante para todo ser humano, pois esse exercício possibilita enxergar além, ver, no singular, o universal e na parte, o todo. Ver o ser e a aparência, a presença e a ausência, o visível e o invisível. Ver com olhos de criança que se espanta com o novo, mas mergulha com ludicidade e explora o desconhecido com curiosidade.
No romance Ensaio sobe a cegueira, o escritor português José Saramago inicia a narrativa com a seguinte expressão: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E Otto Lara Rezende na sua crônica Vista cansada nos faz refletir: “De tanto ver, a gente banaliza o olhar [...] Vê não-vendo [...] Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver[...] Parece fácil, mas não é [...] O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade [...] O campo visual da nossa rotina é como um vazio [...] Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta [...] Se alguém lhe perguntar o que você vê no seu caminho, você não sabe... De tanto ver, você não vê. ”
Abrir-se ao exercício de olhar-vendo e de ver-enxergando aquilo que rotineiramente não se vê, é expandir nossa percepção para o todo integral do qual fazemos parte. É contemplar a existência das coisas e perceber a potente beleza e intensa poesia que estão presentes nas singelezas e reentrâncias das texturas disformes, da variedade de matizes e tons registrados pelo olhar e que nos convidam a meditar sobre a importância de enxergarmos além.
É preciso desaprender a olhar o mundo para nos libertarmos do olhar distraído e condicionado por tantos estímulos. Carecemos urgentemente de olhar por inteiro as coisas ao nosso redor, ver e enxergar o todo, apreciar os detalhes, captar as minúcias que mora em cada coisa e em cada ser; nos maravilharmos a cada instante com o novo e o inesperado. Enfim, necessitamos reeducar o olhar. Façamos desse exercício uma constante em nossas vidas para nos livrarmos, como diz o próprio Otto Lara Rezende, do “monstro da indiferença”.
Referências:
BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record: 2004.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. Nº19.
CAMPBELL, Joseph. O voo do pássaro selvagem. Ed. Rosas do Tempo: 1997.
DIDI-HUBERMAN, Georges. As imagens não são apenas coisas para representar. Entrevista com Georges Didi-Huberman. Disponível em: <http://www.sul-sur.com/2017/06/as-imagens-nao-sao-apenas-coisas-para.html Acesso em: 03.set.2017.
MAIA, Reinaldo. O Ator Criador. Ed. Folias: São Paulo, 2005.
MEINIG, Donald. W. O olho que observa: dez versões da mesma cena. Revista Espaço e cultura, nº13, pp. 35-46, JAN-JUN, 2002.
MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2004.
REZENDE, Otto Lara. Ver vendo. In: NOGUEIRA, E. R. A Imagem e o Olhar: O que a gente vê ou não vê em um mundo saturado de imagens? Disponível em: <http://www.semanaon.com.br/coluna/11/233/a-imagem-e-o-olhar> Acesso em : 10.mar.2018.
SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. 19a. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.