"Eles queriam substituir a Bíblia". Sussurrando em uma silenciosa sala da Biblioteca Pública da Baviera, o especialista em livros raros Stephan Kellner descreve como os nazistas transformaram um calhamaço longo e praticamente incompreensível ─ parte memória, parte propaganda ─ em uma peça central da ideologia do Terceiro Reich.
No ano em que Mein Kampf (“Minha Luta”, em português), de Adolf Hitler, passa a ser uma obra de domínio público ─ o que, em tese, significa que qualquer pessoa pode publicar sua própria edição na Alemanha ─ um programa da Rádio 4 da BBC explorou o que as autoridades podem fazer em relação ao livro, que é um dos mais famosos do mundo.
Segundo John Murphy, produtor do programa Publish or Burn ("Publicar ou queimar", em tradução livre), o livro ainda é um texto perigoso. "A história de Hitler é uma história de submestimação; e as pessoas subestimaram este livro", diz Murphy, cujo avô traduziu a primeira versão integral em inglês de Mein Kampf, em 1936.
"Há um bom motivo para se levar a obra a sério porque ela está aberta a erros de interpretação. Apesar de Hitler tê-la escrito nos anos 20, ele colocou em prática muito do que está escrito ali – se as pessoas tivessem prestado um pouco mais de atenção ao livro na época, elas talvez tivessem identificado uma ameaça", afirma Murphy.
Folheado a ouro
Hitler começou a escrever Mein Kampf em 1925, quando estava preso por traição à pátria, após ter participado do fracassado 'Putsch' da Cervejaria em Munique, em 1923. Ali ele expressava suas ideias racistas e antissemitas.
Quando chegou ao poder uma década depois, o livro tornou-se um texto fundamental para os nazistas, com 12 milhões de cópias impressas. Era um presente que o governo dava a casais recém-casados, enquanto os principais membros do partido exibiam em suas casas edições folheadas a ouro.
No fim da Segunda Guerra Mundial, quando o Exército americano assumiu o controle da editora nazista Eher Verlag, os direitos autorais de Mein Kampfpassaram para as autoridades da Baviera. Elas garantiram que o livro só fosse reimpresso na Alemanha sob circunstâncias especiais.
Mas a proximidade da expiração dos direitos autorais em dezembro de 2015 deu início a um debate acirrado sobre como conter uma possível onda de publicações da obra.
'Auto-ajuda'
Mein Kampf continua a ser impresso em outros países, como o Egito
Alguns questionam se alguém realmente teria interesse em reeditar a obra. Segundo a revista New Yorker, o livro "é cheio de frases empoladas e de difícil compreensão, com minúcias históricas e linhas ideológicas emaranhadas". "Tanto os neonazistas quanto os historiadores sérios tendem a evitá-lo", diz a revista.
Mesmo assim, a obra se tornou popular na Índia entre políticos hindus de inclinação nacionalista. "Ele é considerado um livro de auto-ajuda bastante significativo", afirmou à Rádio 4 Atrayee Sen, professor de religião contemporânea e conflito na Universidade de Manchester, na Grã-Bretanha.
"Se você remover o elemento do antissemitismo, o que se tem é um texto sobre um homem de baixa estatura que estava na cadeia, que sonhava em conquistar o mundo, e que saiu dali para fazer isso".
Mas a remoção do contexto é uma das preocupações daqueles que se opõem à reimpressão da obra.
Ludwig Unger, porta-voz da secretaria de Educação e Cultura da Baviera, disse à BBC: "O resultado desse livro foi milhões de pessoas mortas, milhões de pessoas sofrendo maus tratos, e áreas inteiras destruídas pela guerra. É importante ter isso sempre em mente. E você pode fazer isso quando lê algumas passagens de Mein Kampf junto com comentários críticos adequados".
Quando a obra se tornar de domínio público, o Instituto de História Contemporânea de Munique planeja publicar uma nova edição de Mein Kampf que combina o texto original com comentários que evidenciam omissões e distorções da verdade.
Algumas vítimas do nazismo são contra essa abordagem, e o governo da Baviera retirou o apoio ao instituto depois de receber críticas de sobreviventes do Holocausto.
Incitação ao racismo
Ainda assim, suprimir o livro pode não ser a melhor tática.
Um editorial no jornal americano The New York Times recentemente argumentou: "A inoculação da geração mais jovem contra o bacilo nazista será mais eficiente com a confrontação aberta às palavras de Hitler do que manter seu panfleto revoltado nas sombras da ilegalidade".
Murphy reconhece que uma proibição mundial ao livro é impossível. "Isso está relacionado com a vontade das autoridades da Baviera de fazer valer sua opinião, mais do que simplesmente ter o controle sobre a obra. Eles têm que tomar uma posição, mesmo se no mundo moderno ela não vai evitar que as pessoas tenham acesso ao texto", afirma o produtor.
Quando a proteção dos direitos autorais expirar, o Estado planeja iniciar processos contra a obra usando a lei contra a incitação ao ódio racial. "Do nosso ponto de vista, a ideologia de Hitler corresponde à definição de incitação", diz Ludwig Unger. "É um livro perigoso se cair em mãos erradas".