Tina Tude
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Recentemente dois episódios me trouxeram à lembrança o texto que segue e, por isso, compartilho aqui.
Primeiro, em atuação pela DAFIR- Divisão de Ações Afirmativas da SEMED/PMLF Dafir Divisão Afirmativas, em ação relativa à coordenação do AMII - Ancestralidade, Memória e Identidade Ipitanguense, junto com meus parceiros Accioly Hanna e Tassio Revelat, tive a oportunidade de retomar a reflexão a respeito de alguns dos mais relevantes aspéctos da formação da nossa consciência identitária e pertenças. Depois, pela gentileza de Coriolano Oliveira Filho em compartilhar o vídeo em que defendo a identidade desse povo meu, das terras das águas outrora vermelhas do Ipitanga.
Essa revisitação da memória me remeteu a esse texto que escrevi por ocasião dos nossos 51 anos de emancipação.
Afinal, celebrar a memória constitui um passo fundamental na consolidação da identidade de um indivíduo e de um povo.
Estamos encerrando as celebrações dos 50 anos de emancipação política do município de Lauro de Freitas e, novamente, comemorando mais um ano da mais importante festa cívica deste lugar cujo território compreende uma parte do antigo distrito de Ipitanga, que, aliás, abrigava a chamada Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga.
Eis um bom mote de reflexão também sobre a salvaguarda de nossa memória mais elementar e consequente consolidação de nossa identidade.
A dita degradação ideológica e simbólica a que a emancipação nos submeteu diz respeito, talvez, ao processo de esvaziamento das pertenças e referências identitárias - sem falar da perda do território geográfico, físico do distrito original e a posterior fragmentação do território simbólico, social que nos dá conta de uma cidade fragmentada em micro territórios de bairros e afins, em cujas memórias se manifestam resistências.
Note-se que a cinquentenária Lauro de Freitas resguarda em cada parte (partida, dissociada e desfragmentada) de si, um elemento divergente e quase dissonante de outras partes desse mesmo território que, afinal, ainda não se entende uno, como se o povo de Itinga (que, em língua primitiva, dizia-se o reino das águas claras) ou do Portão (da fazenda ancestral) não pertencesse à mesma "Lauro" da Matriz de Ipitanga... aqui, aliás, Lauro é um termo reduzido à limitada função de designar o Centro, flagrante "delito" sociológico do desvio de percepção da unidade territorial do município. Um vício que, aliás, estima-se, encontra raiz justo na forma precipitada de atribuição de um nome que não encontrava respaldo na memória popular, que não estava referendado no imaginário do povo do lugar do então distrito de Ipitanga que, assim, não encontrando amparo simbólico no novo topônimo, retraiu-se e se resguardou em seu próprio entorno, em certa atitude de bairrismo, sim, mas, sobretudo, de resistência e preservação de sua memória, de salvaguarda inconsciente de suas matrizes identitárias... porque o povo, afinal, tem suas sabedorias.
Tal processo de fragmentação simbólica do território do novo município de Lauro de Freitas, se, por um lado, fortaleceu a cultura de cada parte do município, favorecendo a construção da grande diversidade e pluralidade de manifestações legítimas que reverenciamos ainda hoje (a exemplo da festa de São José de Quingoma, tida como a mais antiga e tradicional manifestação cultural do município), por outro lado, ocasionou um abismo identitário para a percepção da unidade territorial.
A emancipação, não como instituto em si, tendo em vista ter-se tratado de um processo conduzido com legitimidade, legalidade etc, mas do ponto de vista ideológico, antropológico e sociológico, revelou-se um processo que, a despeito de nos legar um nome, não nos transferiu personalidade, visto que, afinal, em nível sutil, sabe-se, no processo de individuação do sujeito, o próprio nome é um dos elementos basilares da constituição da personalidade e construção da identidade. Tendo, portanto, que se reconhecer o emaranhado e desestruturação identitária, simbólica e territorial que tal advento promoveu e cujas sequelas se mostram ainda hoje.
Fato é que nosso território municipal, que nesta data inaugura mais um ciclo de festividades de celebração de nossa emancipação política, ainda carece de referência identitária, a despeito da expressiva, inegável e louvável expansão social e cultural dessas terras de águas (outrora) vermelhas do Ipitanga.
E, aliás, quanto ao manancial simbólico referendado justo no Ipitanga, temos já, então, um outro relevante mote de reflexão, talvez ainda mais caudaloso e, infelizmente, diga-se de passagem, um mote agonizante, em morte gradativa e anunciada em cujo sepultamento jazeria, infelizmente, uma das mais relevantes potencialidades de retratação e consolidação identitária do nosso território.
Lembremos, pois, que o Rio Ipitanga é justo o ente natural que nos origina, o mais fundamental elemento na formação de todo o território em que hoje está situado o município, sendo, portanto, potencialmente, o mais óbvio elemento de salvaguarda de nossas matrizes e raízes.
Logo, sendo o Rio Ipitanga o berço e nascedouro de todo reino e território da água pitanga - caberia aqui outra lauda sobre o tema, discorrendo sobre suas potencialidades várias, mas, ao menos por agora, detenha-mo-nos na emancipação e seus desdobramentos.
Ainda quanto cidade, nome e personalidade, cabe observar que, a propósito, a atribuição do topônimo que nos foi legado por ocasião da emancipação, revelou-se um dos casos notórios de homenagens que "desomenageiam".
Afinal, notadamente, basta observar que no município de Lauro de Freitas, raros munícipes sabem quem foi Lauro de Freitas - impoluta figura da vanguarda da engenharia nos anos 40 e exitoso empreendedor da Cia Leste Ferroviária, responsável por grande parte da expansão de ferrovias do estado à sua época, homem de relevante envergadura política e notável, inclusive, para a história da Bahia, a cuja memória efetiva, a despeito do topônimo, ainda se deve mais vultuosa referência e reverência.
Além de tudo, a medida casuística que engendrou a atribuição de tal topônimo, já em primeira instância, comete a violência simbólica de privilegiar a pseudo reverência a uma personalidade individual - Lauro Farani Pedreira de Freitas, em detrimento da memória de toda a coletividade de uma comunidade secular, desmerecendo o referencial e imaginário ancestral.
Isto posto, por fim, parece-me, talvez que, quanto à celebração da emancipação política de Lauro de Freitas, desde sua instauração, a mais simples e fundamental reflexão que caiba, seja algo em torno do sugerido na sentença a seguir: Lauro de Freitas - Quem é ele; quem somos nós? Até porque, ainda quanto ao Dr. Lauro (personalidade), o Lauro (município), jamais, até aqui, conferiu o justo reconhecimento sequer de sua biografia.
Pensemos, pois, munícipes, em meio aos brados retumbantes de vivas à emancipação de Lauro de Freitas, no conceito de tal Personalidade, da Cidade e, afinal, a Personalidade e Identidade da própria Cidade.
Ipitanga, 31 de Julho de 2013
Tina Tude - (Justina Souza), atriz, educadora e ativista cultural, é membro da ALALF - Academia de Letras e Artes de Lauro de Freitas, onde ocupa a cadeira Tude Celestino de Souza. Foi membro fundadora do CMCLF - Conselho Municipal de Cultura de Lauro de Freitas, onde ocupou a cadeira da Educação, além de ser idealizadora e coordenadora do movimento ATiTude CelesTina, que atua em gestão de educação, cultura, cidadania, ambientalismo, territorialidade e identidade. Cidadã ipitanguense."
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