Leitores digitais como o Kobo e o Kindle começam a ganhar popularidade no Brasil. Agora o leitor tem acesso aos catálogos nacionais – e um possível revolução nos hábitos de leitura está em curso.
Mas nem tudo é positivo nesse processo de transmigração do texto do papel às telas, da tinta para a tinta digital.
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Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA) |
As edições ruins, suspeitas ou simplesmente vagabundas de
e-books começaram a proliferar. O consumidor é a vítima, mas essas edições
colaboram em desmoralizar uma das indústrias de cultura mais veneráveis: a do
livro. Nem mesmo nos tempos dos incunábulos, do século XIV ao XVII, abriu-se
tanto espaço para aventureiros que se fazem passar por editores. Na realidade,
não passam de piratas que vendem caro o que já se encontra gratuitamente nos
sites de domínio público.
Por isso, o leitor deve tomar cuidado
com aquilo que os sites de vendas de e-books andam exibindo. Muitas vezes , as
livrarias digitais vendem gato por lebre. Há livros baratos de conteúdo
aparentemente incontestável que se revelam decepcionante tão logo o comprador
os lê. Aquilo que se anunciava como uma experiência de leitura interessante não
passa de um amontoado de arquivos ilegíveis.
Um dos e-books mais vendidos no
Brasil exemplifica a indigência do novo mercado digital. Trata-se das Obras de Machado de Assis.
Está em quinto lugar em vendas nacionais, na lista publicada por Época,
e é o campeão do site da Livraria Cultura, representante do Kobo no Brasil. No
site da Cultura, Machado de Assis está até mesmo à frente da trilogia erótica
Cinquenta tons de cinza, de E.L. James. O preço ajuda. Por apenas R$ 1,93, o
leitor pode possuir tudo o que Machado produziu. Claro que não é nem bem assim,
nem assim. O e-book, produzido por uma editora obscura – Samizdad Express, com
sede sabe-se lá onde – não informa em que fontes se baseou para reunir
indiscriminadamente crônicas, romances e contos, ao todo 26 livros.
O volume se encerra com uma peça de Machado, Tu, só tu,
puro amor, datada de 1880. Por quê? Ninguém explica. A edição não apresenta os
critérios que deveriam envolver conhecimento no assunto – ou, no mínimo, uma
técnica para disfarçar a ignorânica. Há erros gritantes de grafia. O próprio
título, quando aparece pela primeira vez, está grafado assim: “Obras de Machao
de Assis”. Nem mesmo o novo Acordo Ortográfico é respeitado: tremas, hífens e
outras gralhas atrapalham qualquer jovem que queira se iniciar – ou se
reiniciar – no português correto. Além disso, o editor anônimo ousa transcrever
um trecho curto da biografia de Machado já publicada na Wikipédia – site cujas
informações são mais que questionáveis. Pior ainda é que o livro é quase
ilegível. O índice não oferece links para os livros e, no instante em que o
leitor cai em uma determinada página, torna-se a versão atual de Teseu no meio
do labirinto. O e-reader trava. Até agora, no instante em que escrevo esta
crônica, não consegui voltar ao início do ebook. Dá saudade de folhear um livro de papel, assinado por especialistas e
fáceis de manusear.
Ora, o problema se repete em outras obras em domínio
público, tanto nacionais como estrangeiras. A edição das Obras completas de José de
Alencar, publicada pela Montecristo Editora, com sede em São Paulo,
é ainda pior que a Samizdad. Os organizadores, igualmente anônimos, transformam
os romances de José de Alencar em um monturo indistinto de material textual. Em
que edição se basearam? Não informam. Não há uma biografia do autor, notas de
rodapé nem qualquer outro tipo de informação básica. A sinopse publicada no
site da Livraria Cultura sobre as “obras completas de José de Alencar” é a
seguinte: “O Haras Personal corre o risco de ter o plantel liquidado, vendido
para outras pessoas que não são da família. Três moças precisam provar que são
capazes de gerir a herança que são os quarenta e um cavalos.” O preço de toda a
obra de Alencar é uma barbada (R$ 9,99), mas o que o leitor recebe é um lixo.
Um crime. E assim ao infinito.
Já comprei obras “completas” de
grandes autores em inglês e francês, como Marivaux, Henry James e Wilkie
Collins, e me arrependi de pagar pouco para receber quase nada. Fui enganado.
Evidentemente, poucas pessoas irão reclamar, já que o preço é baixo. E, cá
entre nós, quantos leem o que compram? O que vale é a satisfação do
colecionador de “possuir” uma obra completa. Alguém que me lê agora já tentou
dar conta das obras de Machado e Alencar e tantos outros grandes autores em
e-books? Pois é. Poucos. A única saída é opinar nos próprios sites,
distribuindo notas baixas e reclamações.
A pressa e a cobiça se tornaram as
maiores inimigas do livro digital. Isso para não falar da pirataria
propriamente dita, que corre solta.
Minha dica de leitor escaldado é
óbvia: vale mais a pena pagar mais caro por edições digitais de editoras
reconhecidas – como a Penguin, excelente no campo da erudição – do que se jogar
em obras completas maltratadas por oportunistas. No caso dos textos clássicos,
a melhor opção está em procurá-los nos sites de domínio público, como
OpenLibrary.org, Gutenberg.org e Archive.org. Ali, é possível encontrar boas
edições antigas de obras primas universais ou de textos desconhecidos. O único
problema é a formatação do texto, que pode vir repleto de irregularidades. E,
por favor, não se livre ainda de seus queridos livros em papel. Nada ainda se
compara a eles.
A mudança nos hábitos de leitura
proporcionada pelos leitores digitais deve ser acompanhada por uma atenção
redobrada com o material que lemos. Caso o leitor não vigie o que está sendo
publicado digitalmente, correrá o risco de cair em uma nova modalidade de
barbárie. Ou, como eu, de travar para sempre no mesmo capítulo.
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